Nos 250 municípios brasileiros que abrigam escolas médicas, 78% deles não contam com quantidade de leitos hospitalares adequados, e em 72% não existe hospital de ensino, apesar de haver curso de medicina. Esses foram alguns dos dados apresentados nesta quarta-feira (3), durante a segunda audiência pública realizada pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS) sobre o projeto de lei ( PL 2.294/2024 ), que condiciona o exercício da medicina à aprovação em exame de proficiência. Assim como no primeiro debate, ocorrido em 27 de agosto, o tema dividiu a opinião dos convidados.
De acordo com o projeto, os médicos só poderão se registrar no Conselho Regional de Medicina (CRM) se forem aprovados no Exame Nacional de Proficiência em Medicina, sendo dispensados aqueles já inscritos no CRM e os estudantes de medicina que ingressaram no curso antes da vigência da nova lei. O projeto é de autoria do senador Astronauta Marcos Pontes (PL-SP). O texto foi relatado pelo senador Dr. Hiran (PP-RR), que disse ser favorável à proposta, em tramitação na CAS.
Pelos números informados durante a audiência, o Brasil conta hoje com 449 escolas médicas. Desse total, 266 foram abertas a partir de 2013, o que coloca o Brasil atrás apenas da Índia, cuja população é aproximadamente seis vezes maior que a brasileira. A maioria das instituições de ensino é privada, com mensalidades que variam entre R$6 mil e R$16 mil. Em muitos casos, não é raro encontrar cursos em que profissionais não médicos são contratados para administrar disciplinas centrais da formação, como a clínica médica.
O relator, Dr. Hiran, defendeu a criação do exame de proficiência, com a participação dos Ministérios da Educação e da Saúde, sob a coordenação do Conselho Federal de Medicina.
— De 2013 a 2023 [período de moratória da abertura dos cursos de medicina], a gente viu o poder econômico do Brasil prevalecer e serem abertas escolas médicas no país sem nenhum critério, através de liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal. Esse projeto [PL 2.294/2024] é uma vitória do movimento médico — afirmou o senador, que é médico.
Para o senador Rogério Carvalho (PT-SE), “é preciso ser mais explícito e duro com relação a medidas restritivas, para não dar sinal trocado em relação às fábricas que se tornaram as faculdades de medicina no Brasil, fábrica de ladrões de sonhos, que vendem o que não podem entregar”. Também médico por formação, Rogério defendeu a adoção de um teto no número de médicos que irão atuar em um mercado controlado por todas as instituições.
O presidente da Associação dos Estudantes de Medicina do Brasil (Aemed), Gabriel Sanchez Okida, disse que a criação do exame de proficiência não é um capricho burocrático, tampouco uma barreira aos estudantes de medicina ou aos jovens médicos.
— Pelo contrário, representa uma ferramenta de proteção social, mecanismo que assegura qualidade da formação, fortalece a credibilidade da profissão médica e protege a vida da população brasileira. Quando falamos de saúde não podemos aceitar nada menos que a excelência, pois cada lacuna no conhecimento, cada demora no diagnóstico, cada tratamento insuficiente pode custar uma vida — afirmou.
Segundo Okida, uma grande parte das escolas médicas foi criada com o objetivo de acumular capital financeiro e político, e não de educar um médico.
— Ou seja, vivemos um tempo em que o estudante muitas vezes paga para se formar, em vez de efetivamente estudar para se formar — criticou.
Okida considerou “um avanço muito relevante” a criação do Enamed, anunciada pelos Ministérios da Educação e da Saúde para disciplinar o segmento. Ressaltou, porém, que essa iniciativa “não substitui a pertinência do Exame Nacional de Proficiência em Medicina".
— Essas alternativas não são excludentes, mas, sim, complementares. O Enamed avalia as escolas. Já o exame de proficiência avalia o egresso, o médico que deseja iniciar a sua prática profissional — afirmou.
O presidente da Aemed advertiu que os sinais de alerta causados por tantas distorções nas escolas médicas já estão postos.
— As avaliações oficiais do Enad [Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes] revelam que diversas faculdades de medicina recebem notas 1 e 2, classificações que refletem desempenho insatisfatório e qualidade comprometida da formação. Se não houver a garantia de qualidade mínima na formação, estaremos colocando em risco a saúde da população brasileira. E saúde não admite improvisos, tampouco tolera erros. Estamos tratando de vidas humanas e a vida não tem preço — complementou.
Diretor-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), Sandro Schreiber de Oliveira reconheceu que o Brasil possui o maior sistema público e universal de saúde do mundo, o SUS. Mas apresenta má distribuição da força de trabalho, expansão acelerada de cursos e vagas de medicina, critérios de regulação frágeis e poucas consequências às escolas avaliadas como ruins
— Não temos muito consenso de que o Brasil tem médicos demais, isso é um enorme problema, porque as comparações são muito ruins. A gente se compara com países muito distintos, com sistemas de saúde muito distintos e necessidades muito distintas. Também não há consenso sobre quantos médicos o Brasil precisa. E também temos um constante receio sobre a qualidade da formação médica, que nos aponta para um receio de que ela caia. Mas as evidências concretas ainda não mostram isso — afirmou.
Oliveira disse ainda que formar médicos “é algo altamente complexo, que exige muitas variáveis e muitos esforços de diferentes ordens e, portanto, estamos diante de uma questão altamente complexa”.
— Como cuidar de pessoas com menos médicos do que temos hoje? Essa é uma pergunta para pensar na proteção da sociedade. Que funções o médico que não for aprovado nesse exame exercerá? Esse médico tem muita chance de ir para o mercado ilegal, para o exercício ilegal da profissão e, no final das contas, causar ainda maior ausência de proteção à sociedade. Coisa que não acontece com os advogados, que têm inúmeras outras formas de exercer a sua profissão que não com o registro da OAB. O médico não tem uma única forma sequer de exercer sua profissão sem o seu registro no Conselho Regional de Medicina — avaliou.
Oliveira defendeu uma proposta ampla de regulação, que combine avaliação dos cursos com comitês de avaliação adequados, avaliadores apropriados, testes ao longo de todo o curso de medicina e que o estudante não saia do curso caso a competência não seja aprovada.
Delegado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Francisco Eduardo Cardoso citou dados oficiais e destacou que a medicina é uma carreira muito peculiar, que lida com vida e morte, em que o médico não tem o direito de errar. Tirando o Brasil e o México, todos os grandes países com muitos habitantes exigem que, após a formatura, o aluno passe por provas de qualificação, provas de suficiência e, em muitos casos, a formação com a residência médica é vinculada e obrigatória.
— Em 2023, o Enade constatou que o total de alunos que se formaram em faculdades com notas um ou dois, ou seja, faculdades em tese ruins, quase chegou a oito mil médicos, e que esses médicos receberam CRM e estão atuando. Eles podem estar nesse momento atendendo seu filho no pronto-socorro? Alguém aqui quer que um médico nota zero bote a mão em você, na pessoa que você mais ama ou no seu avô? — questionou.
Consultora técnica do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Cristina Sette destacou que o exame de proficiência não é suficiente para garantir a boa prática médica, “ainda que esse discurso de que um exame vai garantir a boa prática, ou a seleção dos que têm a melhor formação, seja um discurso lógico”.
— Isso é um discurso simplista, a gente precisa avançar. O que é que garante realmente uma boa formação? É uma escola de qualidade. Então, a gente tem que discutir a qualidade da formação. A questão é que os exemplos que vão sendo citados como negativos se acumulam na opinião pública e favorecem a impressão de que nós temos, em grande maioria, maus profissionais trabalhando. Essa não é a realidade que é vista pelos gestores e gestoras — afirmou.
Presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira Filho defendeu a formação de bons médicos. No entanto, criticou a atuação das empresas de sociedade em conta de participação (SCP), que classificou como “a maior ameaça” em relação ao trabalho médico na atualidade.
— É uma precarização completa. A empresa coloca o médico como sócio, numa sociedade falsa. Resta dizer que essa sociedade em conta de participação é legitima para investimentos. No entanto, todos os municípios dos estados brasileiros estão aplicando esse mecanismo para intermediação de mão de obra. O médico recebe como falso investidor e está sendo multado pela Receita Federal. Não é simplesmente pejotização. É muito pior do que isso — advertiu.
Secretário-executivo do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Jurandi Frutuoso Silva manifestou preocupação com a qualidade da saúde ofertada à população.
— A gente não pode ter conivência nem complacência com algo que esteja em prática de maneira danosa à saúde da população. A gente se preocupa com a garantia da qualidade da educação médica no Brasil. O que deveria ser um projeto nacional estratégico na formação do profissional de excelência, alinhado à necessidade do Sistema Único de Saúde acabou em grande medida capturado por interesses econômicos, em detrimento da qualidade da formação do profissional médico e de outras categorias — afirmou.
Diretor de Saúde Suplementar da Federação Médica Brasileira (FMB), Marcos Gutemberg Fialho defendeu a melhoria da formação médica no Brasil. Ele defendeu a adoção de medidas que pelo menos mitiguem a formação de maus médicos e a proliferação precária de escolas médicas.
— Não existe o ideal, existe o possível. Não podemos continuar nessa situação que está, com abertura indiscriminada [de escolas] e profissionais mal formados. Eu preciso de médico bem formado, com capacidade resolutiva de pelo menos 80% dos problemas da população. Estamos vendo no Brasil o segmento empresarial do mercado financeiro abrindo escolas indiscriminadas, comprando segmentos de escolas de medicina, colocando profissionais não médicos para dar aula, cobrando caríssimo e abrindo em locais que não têm nem hospital. O que a gente faz com isso? — questionou.
Presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro disse que o Brasil vive uma situação inusitada com a “expansão metastática” [processo de metástase] das escolas médicas no país. Ele também disse ser contrário à criação do exame de proficiência em medicina.
— A proposta não combate a causa da má formação, pune o estudante e sua família em vez da instituição responsável pela qualidade da formação. Esse é um aspecto que não pode ser colocado em segundo plano. Não estamos combatendo a má formação ao instituir um exame de ordem, na verdade estamos gerando um grave problema social. Vamos criar um contingente de profissionais sem função social específica. Não há função para um bacharel de medicina — afirmou.
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